Casos

Coisas a serem contadas

PESCARIA DE REDE

Houve um tempo em que com certa freqüência eu ia pescar lambari no Bairro Alvarenga, alguns quilômetros além de São Bernardo do Campo. Ali tirou-se muita areia para construção e nas cavidades deixadas formavam-se poças onde fisguei muitos peixes. Havia também um córrego que se ligava com a represa Billings, onde também pesquei bagres, trairas, etc..

Certa vez, a convite de um amigo que tinha carro (fato raro nos idos de 1950) fomos pescar em certo lugar da represa onde, segundo ele, faríamos uma grande pescaria de lambaris. Esse amigo convidou também um senhor que tinha um compromisso de retornar a tempo para almoçar na casa de certo parente.

Achei aquilo muito estranho mas nada falei a respeito. Chegamos no lugar indicado pelo amigo mas a pescaria foi infrutífera, quer com anzol quer com a pequena rede de minha propriedade.

Devido à frustração propus fôssemos no citado Bairro Alvarenga, meu local de pesca preferido, onde certamente teríamos melhor sorte. Chegados, decidimos fazer uma barragem no córrego e começamos a passar a pequena rede em direção à barragem com relativo sucesso.

Quando chegamos à barragem já passava de meio-dia. O dono do carro e seu amigo compromissado já se preparavam para deixar o local mas, nesse momento, entramos no lago criado pela barragem e ali os lambaris e outros peixes estavam concentrados de tal modo que os lambaris saltavam por sobre a redinha , tamanha a quantidade. Isso trouxe de volta os dois que estavam fora de saída.

Empolgados eles também perderam a noção do tempo e, assim, por mais de uma hora continuamos a empreitada de modo hilariante.

Eram quase 14,00 horas quando entramos no carro para retornar a Santo André. O compromissado foi o primeiro a ser deixado em seu domicílio.

Ao chegarmos já ouvimos os impropérios ditos pela esposa alucinada com o procedimento do marido… Ela só não o chamou de santo, tamanha a fúria.

Eu, constrangido e aborrecido, coloquei alguns peixinhos na minha marmita e procurei manter distância do local.

Sentindo a gravidade do momento, assumi uma posição de nunca mais levar para uma pescaria alguém compromissado. Ainda hoje, passados mais de 50 anos, mantenho meu propósito. Pescador que se presa não assume nenhum compromisso em dia de pescaria para não complicar a vida dos companheiros. A pesca é para refrescar a cabeça.

UM CAIPIRA SAUDOSO

A alguns quilômetros da Vila Élvio, distrito de Piedade, estado de São Paulo, morava o Sr. Pedro Godinho, caipira desembaraçado, brincalhão, amigo, bem-quisto de todos. Nos arredores da Vila Élvio havia muitos carvoeiros, todos italianos, que se davam muito bem com os moradores dali. Eles gostavam de provocar o Sr. Pedro e apreciar as histórias, às vezes inverossímeis, contadas com muita naturalidade. Entre outras, ele contava a história do tatu que encontrou empoleirado em uma árvore que, abatido, levou para casa e pediu para sua mulher preparar um virado que ele comeu a não poder mais.

Essa comilança acarretara-lhe um empate total, pois ficara três dias sem evacuar, problema só resolvido pela ingestão de muito óleo de rícino. Ele deduziu daí que o tatu era uma assombração, mesmo porque tatu não trepa em árvore. Os italianos se divertiam ao ouvir essa e outras histórias e após muita conversa propuseram-lhe o seguinte: levá-lo até a Praça da Sé para ver como ele sairia de lá. O Sr. Pedro aceitou a proposta sob a seguinte condição: caso ele retornasse para a Vila Élvio levaria um italiano para o sertão do Turvo e o deixaria lá. O Sr. Pedro alegava que com dinheiro no bolso ele sairia do centro de qualquer cidade, por grande que fosse, mas o italiano jamais sairia do sertão. Naquele sertão só o conhecimento poderia salvá-lo. O dinheiro naquele local seria inútil.

A aposta não pode ser concretizada.

O BURRO VALENTE

Meu pai trabalhava em terrenos pertencentes aos seus pais ou aos de seus sogros. Todos estavam distantes de casa entre quatro e vinte quilômetros. Para trabalhar naqueles mais próximos, meu pai tomava emprestado do meu avô materno não só o burro como os aperos e também os cestos nos quais trazia da roça alguns produtos, como feijão, milho, batata e outros alimentos.

Eu, o mais velho dos irmãos, tinha um peso inferior à soma dos pesos dos meus irmãos. Íamos para a roça dentro dos dois cestos, mas para equilibrar meu pai colocava uma pedra no cesto que me era destinado. Era uma maneira sábia de chegar mais depressa na roça. No retorno nem sempre eu usufruia da vantagem de vir no cesto.

Quando o trabalho era no terreno de meu avô paterno, passávamos por um trecho aterrado, que dividia parte da represa de Itupararanga. Quando resolveram aumentar o nível das águas, foi feito um desvio que aumentava o trajeto em mais de um quilômetro.

Certa vez, meu pai resolveu voltar pelo antigo aterro, agora submerso, com um burro carregado, na suposição de que seria fácil transitar a vau. Como era um aterro, o animal escorregou para lugar mais fundo. Meu pai ficou desesperado, pois não era dono do animal, nem dos aperos. Creio que tenha solicitado a proteção divina nesse momento crucial. Para gáudio dele, eis que o burro carregado nadou, encontrou o aterro, e saiu tranqüilamente, fato este testemunhado por mim.

Creio ter sido a última vez que meu pai quis encurtar o caminho. Foi mais ou menos nessa época de expansão da represa que a maleita vitimou muita gente, inclusive meu pai, que por muitos anos sofreu com a moléstia transmitida por certo mosquito. Era nessa represa que ele pescava as grandes traíras e bagres. Quando a pescaria era diurna, ele me levava e assim fui tomando gosto nessa divertida atividade. Também minha tia materna, Benedita, me levava e também meu primo Dário para pescar no grande tanque localizado nas proximidades de sua casa.

Certa vez eu fui sozinho, peguei uma traíra e por preguiça fiz uma cova no brejo, e ali coloquei três ou quatro traíras. Quando aumentou a água da poça as traíras fugiram da cova, o que me aborreceu muito. Por inexperiência, quando uma traíra abocanhava a isca, eu dava tamanho golpe para cima que o peixe caía no mato. Então o peixe, depois de pescado, precisava ser caçado na mata. Pelo movimento que a traíra fazia, acabava sendo localizada.

Neste tanque usava-se toucinho como isca, na qual se cuspia antes de jogá-la na água. Talvez fosse uma espécie de simpatia. Tive uma infância pobre, porém divertida.

O DÁRIO

Meu primo Dário era meu amigo inseparável. Com ele, fazíamos tantas estripulias. Lembro-me que certa vez surrupiamos o polvarinho do nosso avô, espalhamos a pólvora da terra no chão, encostamos uma brasa que foi assoprada pelo Dário. A pólvora incendiou-se atingindo a sobrancelha e os olhos dele. Ele ficou quase cego por certo tempo. Por sorte, a cegueira não foi permanente.

PESCARIA DESASTRADA

Depois que mudamos para Santo André, em abril de 1943, eu continuei pescando, agora na represa Billings, onde também havia variedade de peixes, tais como acarás, lambaris, tambiús, bagres, carpas e traíras. Tive muitos colegas pescadores, entre os quais cito o Pedro Alves, e seu cunhado e grande amigo Aristides, vulgo Benate.

Certa vez, saimos de casa, alta madrugada, e quando chegamos no Tanque dos Turcos começou a polêmica. Os caminhos se bifurcavam, um achava que devíamos seguir pela direita, outro dizia ser pela esquerda. Prevaleceu o parecer do Benate. Seguimos pela escuridão, atravessando lenheiros onde faziam carvão. Perdemos a noção de onde estávamos e andamos horas sem chegar a lugar nenhum. Quando amanheceu, qual não foi a nossa decepção ao constatarmos que após tantas voltas retrocedemos ao Tanque dos Turcos.

Fácil é dizer o nervosismo do Pedro após tanta caminhada em vão. Já adulto e de bicicleta, muitas vezes fui pescar sozinho e por duas vezes sofri acidente.

A BRIGA MEMORÁVEL

Em 1940 eu ainda morava na Vila Élvio, que naquela época era mais conhecida como “Cama Patente”, local onde se preparava a madeira com bitolas variadas para envio à Matriz, localizada na Ponte Pequena, em São Paulo. Era lá que se faziam as famosas camas da firma Luis Liscio & Cia.
A Vila Élvio era muito movimentada, muitas casas, todas habitadas. Era intenso o movimento de caminhões transportando toras para as duas serrarias que trabalhavam a todo o vapor. Hoje a disposição das casas está mudada. Somente o grande pátio é conservado, porém muito reduzido. Havia um grande armazém naquele pátio, pertencente à firma, local de encontro dos moradores da vila e da periferia, onde era grande a produção de carvão vegetal.
Eu, meninão de 14 anos, trabalhava em diversos serviços, tais como empilhamento de madeira (quadradinhos) preparador de cargas para os caminhões transportadores, balconista e até carroceiro para entregar gêneros alimentícios aos italianos que moravam nas cercanias, todos carvoeiros. Interessados na guerra iniciada em setembro de 1939, não perdiam a oportunidade de exaltar o poderio militar da Alemanha, agora reforçada pela poderosa Itália para combater a Polônia, Inglaterra e França. Comentavam que as forças alemãs e italianas não teriam dificuldade par esmagar os adversários.
Dentre os muitos habitantes da Vila Élvio havia a família Gavião, com os seguintes membros: Salvatino, Benedito, João, além de um adolescente e do Sr. Antonio, o genitor.
Dentre os irmãos, um destoava dos demais, porque não era afeito a pagar as suas dívidas, não sei se por falta de meios ou por ser caloteiro mesmo. Era o mais velho e atendia pelo nome de Salvatino. Dentre seus credores, um se chamava Otacílio, que tinha uma venda no bairro do Lageado, onde Salvatino consumira cerveja por algumas vezes e não se lembrara de pagar a dívida.
O Otacílio, insuflado por amigos mais truculentos, dispostos a dar uma lição no Salvatino, chegaram na Vila Élvio ao crepúsculo e todos se dirigiram ao armazém onde já se encontrava Salvatino tomando cerveja, certamente já meio malhado. Nesse momento começaram as provocações. Além do Otacílio, vieram o Gumercindo, o Simão e um outro cujo nome não mais me recordo.
Eles também começaram a tomar cerveja e a jogar os restos dos copos nos pés de Salvatino, que não reagia por estar acompanhado apenas pelo irmão caçula e adolescente.
Este vendo as provocações, correu avisar e os dois irmãos, que moravam bem perto do armazém. Em questão de minutos chegam os três e começa a briga com armas brancas no grande pátio, onde também se localizava a porta de entrada da minha casa.
Eu, curioso, observava a refrega logo após o anoitecer. Era difícil conseguir distinguir um dos contendores, mesmo porque eu não podia e nem devia ficar muito próximo por questão de segurança.
Finda a briga, o Salvatino estava morto, o Otacílio tinha um pulmão perfurado que jorrava muito sangue. Fora recolhido em minha casa e depois levado para Sorocaba.
Lembro-me o que o Otacílio, conhecido dos meus pais de longa data, disse para minha mãe: “Nunca fiz uma visita para vocês e hoje venho à sua casa para sujá-la”, dada as golfadas de sangue que expelia.
Tão logo ele foi levado, minha mãe e eu tivemos muito trabalho para lavar a sala, onde havia muito sangue.
O Benedito ficou com os intestinos expostos, o Simão com uma espetada na nádega. Que me consta, saíram ilesos o patriarca, Sr. Antonio, o João e o Gumercindo. O Dr. Cipriano, de Piedade, foi contratado para defender a turma do Lageado e o Dr. Ribas, de Sorocaba, veio para defender a família Gavião. Conseguiu-se, não sei de que forma, provar na Justiça que os mortos, Salvatino e Otacílio (que morreu no hospital em Sorocaba) mataram-se entre si, e todos os demais que tomaram parte na luta foram absolvidos. Segundo meu pai, o autor dessa façanha foi o Dr. Ribas.
Findo o julgamento, qual não foi o meu espanto ao presenciar o convite feito pelos envolvidos, de maneira recíproca, para “matarem o bicho”, como se nada houvesse acontecido.
Devo ressaltar apenas que os irmãos e o pai do Salvatino foram pensionistas dos meus pais e foram muito corretos. Que o Sr. Otacílio também era homem benquisto e que, também, nada sei que pudesse desabonar os seus acompanhantes.

A MUDANÇA

Em julho de 1936 nós mudamos do bairro do Campo Verde, município de Ibiúna, para o então chamado Bairro dos Pintos, município de Piedade. Chamaram-me a atenção diversas particularidades, umas agradáveis, outras não. Dentre as agradáveis, cito a quantidade de lambaris grandes e de mandis-chorões existentes no ribeirão que passava nos fundos de nossa casa, onde eu passava muito tempo e de onde retirava a proteína necessária para toda a família. Foi ali que eu aprendi a nadar, a jogar truco com o Eduardinho e alguns de seus irmãos.
Aos domingos, pegávamos uma carona no caminhão do Sr. Amador Pereira, e íamos na venda do Alemão, bairro do Caetesal, onde havia futebol, bocha, baralho, sempre num ambiente festivo.
Dentre as desagradáveis, havia o costume de, na quaresma, reunirem-se diversos rezadores que iam de casa em casa, onde chegavam silenciosamente e entoavam uma oração lúgubre que fazia os meninos como eu tremerem de medo.
Outro fato que me assustava era quando traziam defuntos envoltos em lençóis e transportados em redes, nas quais introduziam um varão que dois homens conduziam. Dada a grande distância entre o sertão e o cemitério da cidade, uma providência precisava ser tomada cada vez que alguém ia prestar contas no Além… Assim, um vizinho do falecido saía de casa cedinho e vinha avisando outros vizinhos ou conhecidos para esperarem no trajeto e colaborarem no transporte, por demais cansativo.
Cumprida a missão, o parente mais próximo do morto convidava todos os participantes para “matarem o bicho” e logo após retornavam aos seus lares. Depois disso havia a novena para encaminhar aquela alma a um lugar santo e definitivo.

O AZARADO

A Vila Élvio do meu tempo, e talvez ainda hoje, não dispunha de saneamento básico, o que constituía um grave problema. Assim, muitas vezes, a solução era apelar para os detestáveis urinóis, esvaziados com certa freqüência. Dentre as muitas casas da vila, morava a dona Rosa, mãe da Jorgina, que namorava com o Antonio, também morador da vila.
Certa noite, dona Rosa estava na casa dos pais do Antonio e a conversa girava em torno da serenata que o Antonio fizera para a Jorgina.
A dona Rosa dizia que se comoveu com a serenata e que a filha homenageada até chorara. O pai do Antonio, enojado com tal tipo de conversa, resolveu sair de casa para espairecer, após ouvir tanta baboseira.
Saiu e passou sorrateiramente rente aos quartos de diversas casas e, inesperadamente, ao passar pela casa do Belmiro, foi premiado com respingos da urina, porque nesse momento a dona da casa esvaziava o urinol.
Meu pai, que trabalhava para a firma, sofrera um acidente e não mais podia fazer serviços pesados. Foi-lhe dada então a função de guarda-noturno das serrarias. Era a época do frio e ele sempre fazia uma pequena fogueira em local adequado.
Ali chegou o nosso amigo. Respingado e com cheiro nauseabundo de amônia contou sua desdita, aproximando-se da pequena fogueira na suposição de que o calor fizesse evaporar aquele cheiro fétido.
Temia voltar logo para casa e ainda encontrar a dona Rosa, que poderia inquiri-lo sobre o que seria mais agradável: ouvir calado a conversa sobre um amor incipiente ou retornar em condição lastimável e mais nervoso.

Decumbente, o senil e decrépito varão suportava a canícula do estio, destra sob o mento, estático como uma esfinge, nem reunia forças para locomover-se até a sombra de secular baobá providencialmente localizado em seu derredor, próximo a um arroio, cujo murmurinho sedento ouvia. Pressentia o seu prestes desenlace, o abandono da carcaça exaurida e o célere adentramento no éden da sua alma cândida e angélica, já que a sua consciência era imaculada.
Sua vida nômade comparava-se à de um barco à deriva e lhe dava a sensação de liberdade plena, mas agora, macróbio e sem asilo, via no sedentarismo que sempre desdenhou a vida ideal.

Nem o eflúvio ou a brisa que esporadicamente provinha das cercanias tirava-o do marasmo e da absorção envolventes.

Eis que, abruptamente, de um carrascal adjacente ouviu o matraquear estridente das fortes mandíbulas de uma vara de queixadas vinda em sua direção com o ímpeto e a ferocidade peculiares à espécie.

Do torpor que antes o dominava ressurge num átimo o intrépido mancebo de outrora, galgando lépido frondosa árvore que se lhe depara a poucas braças e queda-se medroso até passar o turbilhão ameaçador…

Moral da história: A luta pela sobrevivência é um dom divino.